sexta-feira, 5 de abril de 2024

Cafarnaum



 Quando eu fiquei muito mal da covid, a ponto de se eu me apresentasse a um hospital eles me entubariam (e eu não estaria aqui agora), eu tive uma vivência profunda do tédio. Eu tinha me isolado na biblioteca e intimado a todos de não se aproximarem, mas a Júlia, o Eric e a Dani praticamente arrombaram a porta e se deitaram afrontosamente no colchão que eu tinha estendido lá, do meu lado. O resultado foi que todos se contaminaram, expressando sintomas brandos. Ruim mesmo ficou eu. Um dia eu tentei erguer meu braço e não consegui. Perdi oito quilos em uma semana. Enzimas do meu cérebro foram reduzidas quase a zero, a ponto de essa percepção me fulminar. Era um estágio de profunda depressão. Recordo que me sentei com o Eric para ver um desenho, e me marcou o quanto o urso do desenho sofria, se desgastava em uma vida sem sentido, lutando contra uns esquilinhos azuis que nasceram para atormentá-lo. Eu pensava: "Isso é uma síntese precisa demais da existência humana para ser um desenho infantil!" A revelação de que o tédio é o moto perpétuo da existência e a única força que move o universo foi a coisa mais importante que me aconteceu. Eu me recuperei. Parei de beber. Parei de ter compulsão pela comida. Perdi 25 quilos e mantenho meu peso ideal até hoje. Todas essas coisas, bebida, comida, eu as tinha para vencer o tédio. Todas as noites tinha a hora do rock n roll, em que eu bebia uma garrafa de vinho ouvindo música, e depois comia um nababesco jantar. Hoje eu como regradamente, o mínimo possível. O drible ao tédio foi embora, mas também foram a hipertensão, a gota, a gastrite, e a baixa estima. Mas voltemos ao tédio: eu constatei o seguinte, se o espírito for imortal, o tédio é a constante universal. Um amigo espiritualista me disse certa vez que Deus criara a reencarnação para enganarmos o tédio. Uma ideia que me pareceu estúpida. O tédio tem de ser confrontado, aceito, interiorizado, enlevado. Se tivesse outro nome, que não essa pecha de tédio, poderíamos compreendê-lo mais corretamente. Se chamasse, por exemplo, cafarnaum. E eis que me deparo com esse livro do Kierkegaard, O desespero humano, no qual ele fala sobre essa minha descoberta pessoal. O desespero só pode ser sentido pelo ser humano, e ele vem como algo positivo, pois é a limpeza de eufemismos quando o espírito se vê diante de deus. Como já disse antes, eu leio muito, demasiado até, mas não levo nada a sério do que leio. Como Borges falou a respeito de Tomás de Aquino, grande parte da filosofia e da ciência me parece apenas uma bem engendrada ficção. Mas levo as intuições a sério. Se somos imortais? Se deus existe? Eu recebo essas intuições com as mesmas reservas que recebo as opostas, de que tudo é o Átomo (o que me parece, devo dizer, uma tolice maior ainda!). Mas eu sei que, se a vida imortal existir, não será para todos. Gorenstein diz que deus pouco se importa com a caridade. O que importa no eterno é o enriquecimento espiritual, o que a caridade seria uma mera consequência, visto o mal sempre, sempre, sempre ser burro. E o enriquecimento espiritual nada mais é que a convivência ativa com o tédio e o desespero. Somente seres imortais e eternos sentem o desespero. Camus também escreveu sobre isso, quando disse que devemos ser fanaticamente lúcidos, lúcidos até beirarmos a insanidade.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Promenade

 


Salmon Eresh sabia que se tratava de um assunto delicado, do qual ele não poderia mais fugir. Vinha adiando o enfrentamento com aquele cristal translúcido do estúpido perigo que a realidade armava diante de seus olhos, e agora não dava mais. Iria ter que abraça-la, embora atirar-se para seu fundo talvez fosse a imagem mais condizente. Olhava por sobre o gorro da cabeça de Irwin, muito além das árvores empoeiradas que insistiam em crescer num pequeno quintal com ares centenários de uma casa de tijolos pelos quais passavam em seus passos trôpegos e concordantes; balançava a cabeça para que seu amigo não se irritasse com mais uma mostra de que desde quilômetros atrás não se atinha a nenhuma palavra que saía dele, apenas simulava ouvi-lo, mas as musas inescrupulosas que tomavam as rédeas de sua vida já sussurravam como deveria ser, como ele deveria realizar aquela idiotice suicida da maneira mais desastrosa possível.

          _ Hein, Sal? O que acha?

         Salman Eresch abaixou os olhos, aflito por ser pego em flagrante. Teve que reprimir seu tique caraterístico de tossir que sempre lhe acometia quando seu retorno à realidade era cobrado. Era o preço a se pagar por ser demasiadamente íntimo de Irwin. Conteve-se também para não ajustar o chapéu, sabendo que o amigo iria se irritar com essa entrega de que sua mente planava no éter sem lhe prestar a mínima atenção. Com um olhar sereno, voltou-se para Irwin e assentiu.

      _ Acho que deve estar certo meio por cento e o que sobra de resto você deve analisar com mais cautela.

    Pronto! Irwin podia ter cara de idiota_ e na verdade não tinha, com seu traço cigano que depois de uma boa ducha de água quente e uma repaginada apareceria com certos ares de beleza_, mas não o era; de cara ele soube que suas custosas e trabalhadas palavras haviam caído no vazio, aquela parlenga que vinha fazendo com paixão desde duas esquinas esquina atrás, fora atirada para o nada. Salmon estreitou seus olhos e fez uma careta de dor antecipada. Merecia o que vinha adiante. Como gostaria que Irwin fosse mais condescendente com seus deslizes. Havia tanto mal no mundo, ele suspirou, olhando com piedade um rato estraçalhado na calçada e que seus passos tiveram que contornar, e nada desse mal estava instalado no seu coração, pelo menos não relacionado ao amigo, para que ele perdesse tanto tempo com destemperos gratuitos.

          _ Você é um egoísta, Sal! Não sei por que raios eu ainda insisto em andar do seu lado. Melhor seria que eu saísse sozinho conversando comigo mesmo, como faz o velho Vilhena. Para você só o que tem entre suas orelhas lhe interessa, e o que deve ter entre as orelhas deve ser realmente muito genuíno para achar que salvaria o mundo.

       Salman engoliu em seco. Por um triz quase deixara também de prestar atenção a essas palavras de Irwin pois sua mente começara a analisar quem fora o assassino furioso que fizera aquilo com o rato. Em ligeiro retrospecto viu que sua cabeça virara em direção oposta à de Irwin, pronta para vasculhar o cenário onde ele estaria. Negro, maltrapilho, indisposto a perturbação, seviciado por uma longa vida de maldades que para ele fora suficiente apenas rasgar a barriga da vítima e deixa-la com as vísceras expostas: o gato. Mas não! Concentre-se em Irwin, deixe o pobre irlandês extravasar sua digna e legítima indignação.

         _ Tudo bem, Irv! Eu sou culpado_ começou a dizer com sua voz arrastada, torneada de cinza por cinco décadas de tabagismo, as cordas vocais acostumadas a trabalhar em uma meia frequência que se adaptara à malemolência de sua língua preguiçosa que só se movia para as funções gastronômicas. Uma voz que tinha o privilégio de atender aos canais de assimilação do senso comum atribuídos à sabedoria e à tranquilidade, o que mesmo para Irwin servia a lhe acalmar. Irwin considerava que o amigo podia ser mesmo de uma percepção da realidade superior ao dos demais; enxergava nas brechas onde ninguém se interessava em perder seu tempo observando e assim angariava vantagens plausíveis. Mas anos de amizade o capacitara a saber que sempre havia um elemento de estupidez recorrente naqueles planos mirabolantes de Salman_ Mas note bem, Irwi. Vamos nos ater ao projeto. Vamos jogar toda tralha espiritual que nos ocupa hoje no lixo; você pode fazer isso, não é uma pergunta. Um bom começo é nos desfazermos da ira.

            O frio veio com tudo pra cima. Um vento que deixava claro ter propósitos firmes nos objetos que estavam além deles, no final da perspectiva livre em que ganhava velocidade e espichava suas unhas diáfanas de força para acarinhar com ávida violência os papéis, latas vazias e cestas de lixo, destrambelhando-os com uma alegria irracional e sem propósito. Tudo no mundo se expressava através de uma brutalidade descomedida e sem propósito, que se freava quando se confrontava com vetores das tantas e tantas outras manifestações das leis naturais que também se cumpriam com o mesmo descomedimento e selvagem exaltação. O mundo não havia se acabado ainda por causa desse equilíbrio entre a fúria de miudezas da inconsequência devastadora. Eram esses pensamentos metafísicos cheios de nuances do oculto gato assassino que ocupavam a mente de Salman, levando-o para longe do borrão sonoro do que Irwin dizia, que ele sabia ser uma reclamação renovada de sua capacidade irretorquível de se distrair e não habitar o mundo. Desde criança era assim, talvez já tivesse contado isso a Irwin numa das tantas tentativas de obter perdão do amigo por isso. Devo ter falado da minha terna mãezinha de olhos escuros e lenço na cabeça, que reclamava com uma voz parecida à de Irwin, cheia de indignação, quando me via com os olhos nublados de sonho na mesa de jantar. Ela achava que eu não serviria para nada quando crescesse, era uma mulher dura mas meiga, insinuava meu fracasso por gestos e dar de ombros, por suspiros de resignação. Ela estava absolutamente certa.

         _ Muito bem, Sal_ Irwin encolheu o pescoço para se proteger na gola do casaco, soltou um hausto de vapor quente que se projetou numa fumaça translúcida no ar._ Vou seguir seu conselho. Qual a sua ideia para sairmos desse impasse que estamos hoje?

        Salman não estava preparado para isso. Com notável lucidez percebeu que ambos atendiam a alguma necessidade fisiológica em serem deixados em paz para realizar as últimas atividades peristálticas, e aquela conversa fiada era manifestação disso. Era uma espécie de função cognitiva inconsciente que as pessoas realizam em manhãs como aquelas, de uma segunda-feira fria e insubmissamente indiferente, em que os hormônios e as sinapses nervosas detinham o conhecimento verdadeiro de que o que realmente era sério e importante eram aquelas singelas reposições intercambiáveis do corpo. Na mesma linha das danças de acasalamento dos pintassilgos, mas em sentido contrário. Não havia alegria nem promessas de vida, mas o recolhimento exercia certo conforto que ele não tinha porquê reclamar. Ele se obrigou dessa vez a acordar aquele cérebro que sabia ser meticuloso e astuto quando bem direcionado.

       Fez um esforço não tão hercúleo para se lembrar da situação beirando a catástrofe em que ele e o amigo estavam. Precisava explicar a Irwin seu plano com a mais zelosa pormenorização possível, por isso procurava comunica-lo através de um silêncio eloquente cheio de sutis respiros, remodelamento da velocidade do passo e um e outro pigarro na garganta de que estava organizando as frases, enfileirando na cabeça em uma ordem lógica as imagens do que tinha a dizer. Irwin parecia ter entendido, pois se calou e impusera às pernas a desaceleração que as pernas do amigo requeria. Pense, Salman, Salman se ordenava, não o deixe esperando. Se não falar logo o que tem que falar, ele vai se irritar novamente e tudo vai voltar à estaca zero.

            Há quantos meses os dois andavam por aquelas ruas da cidade, mediam com os pés os metros da igreja da matriz até a orla da praia, do colégio provençal até o beco do comércio, depois iam do batalhão militar até a zona do lupanário, faziam a curva no monumento do relógio solar e viam o sol se ascendendo ao zênite no meio da reserva florestal? Andavam tanto que as pessoas deveriam pensar que eram antigos aristocratas      

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Espinosa


 

O sr. Flibas catou de uma estante um volume da Ética, de Espinosa. Folheou-o e voltou à primeira página, pondo-se a lê-lo. Já o havia lido um sem número de vezes e sabia várias partes de cor, mas sempre que o encontrava não resistia a um vislumbre apaixonado. Por muitos anos se deixou levar por aquelas ideias, se consolou com elas. A forma como o filósofo português, ou espanhol, ou flamenco, cada nação que o reivindicasse por orgulho, a forma como ele, ele ia pensando, definira deus, por anos o sr. Flibas se forçara para ver nisso o consolo que os que escreveram os prefácios e as contracapas propagandeavam. A grande libertação que era pensar como o mestre. Ele se deixara levar por essas sofisticadas palavras. Como toda marca muito famosa, Espinosa era o suprassumo do pensamento elevado. Isento de dominações religiosas, isento até mesmo de piedade. Se podia trancar em um quarto e ficar com Espinosa só para si, sem precisar com isso amaldiçoar o mundo. Ele passou a mão pelo pó da capa e se lembrou da impossibilidade de se separar o infinito em dois. Se separando, cada parte seria infinita e criaria a implausibilidade racional de duas partes do infinito somadas serem maiores do que o infinito em si. Pequenas anedotas que engrandeciam a alma do leitor, essa que o filósofo afirmava não existir. Deus era a lei rígida, inexorável, sempre existente, imortal e infinita, logo não poderia haver nada que extrapolasse os limites de sua criação, a Substância. Era a maneira mais cristalina de resolver grandes questões inúteis. Espinosa acabou com séculos de exclusivismos humanos em posicionar o homem  como ser beneficiado por algo que os tufões e os vulcões não eram. Mas tudo bem, as grandes corporações de empreendimentos metafísicos sociais baniram Espinosa, decretaram que nem os vermes deveriam prestar atenção a ele, que não o cumprimentassem. Enumeraram as parcas quantias de bens que ele tinha, seus 160 livros, seu cobertor, seu travesseiros, suas velhas vestes de pobres, e o afastaram da sociedade. Sob tal peso, mesmo esse que deveria ser o mais livre dos mortais não aguentou, e essa fátua, esse herém, o levou a uma morte prematura. Sempre vão falar que era a estimativa média de 300 anos atrás num mundo cientificamente primitivo, mas o gênio Espinosa morreu de solidão inconsolável. De nada adiantou sua lucidez baseada na mais pura felicidade racional, pois foi justamente o que combateu como o atraso animal do homem que o matou. Era uma simplificação maravilhosa aquela genialidade condensada que tinha o atributo ainda de ter sido banido, potentes revelações sobre um niilismo asséptico que custara a morte e a obsolescência de sistemas metafísicos sagrados.

   Espinosa fundou toda uma corrente de mentes poderosas que se sentiram autorizadas pelo sangue derramado de seu mestre a irem contra as grandes construções políticas. Deus foi visto em seu avatar último de regente institucional de organizações com fins muito bem sedimentados em interesses terrenos. Não era para menos que onde caia essa semente da palavra a mácula do banimento seguisse seus novos promulgadores. Mas esse jugo a que Espinosa atribuía o empecilho para a liberdade humana, no entanto, era o que determinara que o humano progredisse. Sem as igrejas e as sinagogas, sem o sistema monetário que vicejou a poucos metros da casa do grande filósofo, com os usurários holandeses sentados em bancos de madeira ao lado do rio Amstel à espera de que suas vítimas trouxessem os exorbitantes juros dos empréstimo consentidos, sem essa vida vicejante, corrupta, escatológica, visceral e mesquinha, a humanidade não teria ido muito além dos limites da caverna. Só um Espinosa fortalecido por sua posição de pária fundamental, elemento exórdino louvável e apologético que se valia pelo poder em negativo de confirmar tudo o que repudiava, poderia existir em sua dimensão própria de saber privilegiado. Só ele poderia ser esse tipo de super-humano despido de cheiros, rasteirice e abjeções, livre da perversidade dos pastores corruptos e dos velhos sábios do Sião com seus filactérios e suas sinetas cujo propósito os séculos trataram por eles mesmos enterrar. Só Espinosa poderia reivindicar uma nova tautologia absolutamente exclusiva onde ele em uma solidão majestática poderia habitar, intocado pelos séculos ou milênios que a sociedade ainda ousasse perdurar depois de seu novo evangelho. Não havia, em todo reino da erudição humana, um só modelo que pudesse ostentar uma aproximação do homem a alguma ideia de sacralidade. Tudo descambava no mais deslavado niilismo. E era a isso que o velho Baruch chegara, com suas palavras cordiais, sua educação límpida de não ofender, não julgar, não amaldiçoar e nem lamentar nada. Se todos os seres humanos tivessem se convertido em massa às suas doutrinas, a humanidade não duraria mais que um século. Um século consumado em uma felicidade estranha, de sorrisos cheios de um aprimorado terror, o sorriso da tirania do nada, da reificação da obsolescência aceita. Espinosa teria adiantado em três séculos o nazismo e a sociedade deísta construída no estágio preconcepção do ideário leninista. Uma humanidade que se resignasse em viver na eternidade, assepsiada do orgulho, da ganancia, da sexualidade e mesmo do memorial formativo que constituía a lembrança individual, teria caído em questão de décadas ao extermínio mais atroz e abjeto. Viver apenas com as premências do espírito imortal dentro do fervor controlado da carne finita seria o mais pavoroso dos infernos.

   Era para confirmar essa sua aversão à beleza conceitual máxima das ideias de Baruch que o sr. Flibas gostava de se emergir naquela cidade sombria e movimentada. Se submeter aos ruídos, ao estalo, ao som do freio fremindo em sua potência desesperada máxima, o som das gralhas das mulheres e da brusquidão dos homens, ou o som disperso procurando seu direito de progenitura das crianças, o som dos pulsos sobre o vidro, das janelas sendo abertas, dos despojos se liquefazendo nas sarjetas. Era essa a vacina do sr. Flibas contra aquele cristal fractal de lucidez aterrorizante da grande ideia. Uma ideia que impressionara os maiores homens de seus tempos, de Goethe, Mann, Tolstoi, a Einstein. Nós somos deuses era o que Cristo falou aos apóstolos. E Espinosa traduziu essa frase dessarroada por nós vivermos em deus, de forma que toda revolta, todo movimento, toda procura e descoberta, era resultado em nada. Viver em deus e ser deus resultava em um apaziguamento que não dava mais relevância alguma em continuar. Isso justificava acreditar que os únicos sábios pragmáticos que receberam bem esse novo mandamento foram os que sucumbiram em longas prestações ao suicídio das drogas. Só os bêbados e os loucos teriam razão, os loucos de deus. Espinosa não diferia em última instancia à crendice cosmológica de Cthulhu ou a cientologia. Não meu caro Baruch. Nós precisamos de esquemas pueris, de servidão das formas, de complacência diante uma ideia menor, mais espúria e contornável, em algo que nossas frágeis e trêmulas mãos possam tocar. Nós somos cegos e todas as formas que se prestarem a se preocupar um pouco que seja com nossa redenção tem que se situar nas três dimensões conhecidas. Nada de física quântica, nada de grandes esquemas, paradoxos do saber, grandes potenciais inflados do cérebro para vislumbrarmos deus. Nós não queremos vislumbrar deus, não nesse estágio em que estamos. Não nessa era em que novas conjurações estão sendo testadas com os velhos êxitos alienantes.

  O sr. Flibas resolveu comprar o velho livrinho. Já tinha três edições, uma da universidade de São Paulo e outra da editora Perspectiva, numa coleção das obras completas do autor em quatro volumes. Estava livre de Espinosa, o que queria dizer que não tinha muita coisa a se apegar como substituto. Ele avançou pelo espaço entre as estantes improvisadas, na pequena saleta. Quase se esbarrou num senhor de óculos e chapéu panamá, que estava acocorado como um menino procurando nas estantes debaixo. Se desculpou, ao que o homem sequer expressou alguma resposta. Desceu uma escadinha pequena composta de três degraus e chegara à sala principal, de teto baixo e entulhada de mais livros. Do lado esquerdo havia o balcão, feito por uma mureta branca de tijolos pintados com cal, onde havia uma plataforma abaixo que servia de mesa para se colocar os produtos. Ele ficou postado ali em pé, aguardando alguém aparecer. Olhou em torno e só agora viu que havia mais pessoas que teria imaginado para o horário. Contou distraidamente quinze pessoas. Havia duas mulheres, que conversavam baixo examinando um livro, e sorriam com uma incrível jovialidade. Era uma compulsão ter que substituir Espinosa por aquela cena, de duas jovens sorrindo com um livro em mãos. Se tivesse algo em que acreditar, o sr. Flibas cismaria em acreditar naquela cena. Romântica, burlesca, com o mesmo sentido raso de uma propaganda de banco. Não era a mônada de sentido da qual resolveria morar com conforto e nem trazia aquele tipo de mensagem terna para seu sono irregular à noite_ onde era propício ele inserir e arregimentar cenários que o desincorporasse para o sono_, mas se ele não se sentisse tão fisiologicamente isolado em suas resignadas expectativas da velhice, ele gostaria de enquadrar aquela cena e emoldurar na parede de seu palácio interno. O fato de não ter que explicar aquela sensação a confirmava, sua afasia discursiva. Um mundo onde a comunicação fossem lâminas de fotografias ininterruptas, pensadas com seriedade conforme a apreensão sensorial sincera, seria um estágio da evolução, um desvio padrão interessante. Mas por ora, por milênios enquanto a espécie ainda insistisse em durar, o propulsor da vida estaria sempre do lado de fora de Espinosa e absolutamente alheio àquela jovens sorrindo. Mas ele podia guardar para si como solidamente importante a luz daquele instante, por mais que todo falatório de sua mente e do mundo viesse tentar suplantá-la.

   O armênio havia aparecido do fundo da sala, com um telefone celular pregado no ombro. Reconheceu o sr. Flibas e acenou para ele com um meio sorriso. Era o máximo que comportava seu semblante reservado. O sr. Flibas pagou pelo livro, uma bagatela. Grandes tesouros sendo desfeitos por cêntimos. Era a forma de continuar o herém. Deem ao proletário tudo o que ele nunca imaginou que tem e assim evita-se o dispêndio de grandes fogueiras para queimar livros.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Uma distante rua em Omsk

 



Minha vida em busca do esclarecimento me mantém fora das formas pré fabricadas de pensamento, e eu sempre segui no sentido contrário do senso comum e do padrão instituído, seja da sociedade, da ciência, da filosofia, etc. Eu não digo que creio e nem que não creio. Eu posso afirmar apenas que me foi dado o sistema sensorial mais sofisticado do universo, com meu cérebro humano e toda a mágica intuitiva que ele me proporciona. Esses dias eu falava a uma amiga que ela, que tem 41 anos, é ainda muito jovem, pois não perdeu ninguém. Eu, quando tinha essa idade, era cercado por todos que ainda estavam vivos. Hoje, meus principais amigos já morreram, e eu sinto o estranho epíteto tardio de ser órfão. Era algo inimaginável essa solidão. Minha cunhada passou mal ontem em seu trabalho, e quando estava sendo socorrida viu entre seus colegas o seu pai, parado a observando. Seu pai que morreu faz dez anos. Meu melhor amigo, Galeb, que era um profundo espiritualista de enorme cultura, me disse, duas semanas antes de morrer: "você aciona o gravador em sua biblioteca silenciosa e pergunta por mim. Eu virei te dar a prova". Minha mãe morreu, eu visitei pela última vez seu apartamento desolado, um local que me trazia tantas e tantas lembranças. No quarto escuro, com aquele vazio duplamente profundo dos ambientes deserdados, eu forcei para ver o vulto dela sentado. Lembrei de Houldini, que procurou em vão pela mãe morta em invocações rituais. Tirei fotos, para ver mais tarde. Quem sabe algo pudesse ser flagrado, nebulosidades sutis, luminescências evasivas. Uma manhã, semana passada, eu acordei com a certeza de ter sonhado a noite inteira com o Galeb. Não me lembrava de nada, só de que fora uma das nossas conversas iluminadas e arrebatadoras. Será que é assim? Será que o espírito é mais sutil? De minha mãe eu sonhei não com ela, mas com sua ausência. Uma viagem que ela demorava por voltar. Uma tarde, estando sozinho em casa, ainda inconsolável, eu peguei enfim o gravador do celular. "Galeb, você está aí?". Deixei gravar cinco minutos. Ouvi e reouvi, no computador e na tv. Chiados, a estática que lembra o som residual da criação do universo e o som das nebulosas. Mas isso não quer dizer nada. Se ele respondesse prontamente, esse sacana inveterado, aí sim eu não iria acreditar. Iria achar que era uma distorção do meu anseio por ouví-lo.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Resto




  Quando ela voltou da cozinha com as chaves, tendo corrido a cortina da janela para que também ali o sol não entrasse, encontrou-o onde o havia deixado um pouco mais cedo, sentado em sua poltrona de couro. Como todos os anos, naquele dia, ele em nada mudava seu itinerário pela casa, apenas exercendo com mais peso a sua inércia astuciosa, acordando de madrugada, vestindo-se com menos apuro do que antigamente mas ainda assim a camisa velha e as calças de brim lhe dando um ar perfeitamente composto e sóbrio. Dormia_ o que ela sabia por conhecê-lo tão bem, por ser por cinco décadas a receptora atenta de todos seus gestos e manhas, de toda a ordem marcial que desde o primeiro dia em que ele a pusera para viver naquela casa ela pressentira que aquilo se tornaria com a velhice um decálogo de preconceitos e ódios por tudo que lhe fosse diferente. Seus braços não se descontraíam no sono, mesmo pousados cada um no espaldar da poltrona mantinham uma atitude belicosa, os dedos artríticos encrespados segurando-se na borda do couro como se temesse uma repentina ruptura na constância de sua falta de sonhos; seu rosto como uma máscara mortuária, ela não sabendo dizer o quanto era desesperadamente inexpressivo com aquele crânio querendo se libertar da pele, as sobrancelhas sempre contraídas como se _ela pensou_ no fundo nunca tivesse feito outra coisa além de repudiar violentamente a si mesmo. Quando ela se aproximou mais, um tremor descomunal a fez se segurar na mesa da sala. Meu Deus, pensou, como ele sempre fora apiedante e solitário. Não um demônio, mas um ser muito mais baixo e sem legitimidade, a verdadeira vítima. Só uma mulher como ela poderia amá-lo como ela o amava, e só uma velha como ela poderia perceber o desassombro e a extensão desse amor. Não havia muito o que amar naquele corpo. Era tão insubstancial como um bebê que tivesse-lhe saído inteiro e com toda impossibilidade de esperança de dentro dela. Como se pudesse substituir o que se fora por aquele e tal substituição só agora fosse concluída, só agora quando não mais lhe serviria a proteção que ela lhe daria e pelo pouco tempo que lhes restava. Quando ela passou por ele sabia que o despertaria de seu tênue sono. Estava preparada para se deixar segurar pelo seu olhar irredutível, e como se a compaixão tivesse extravasado e contaminado o ambiente, percebeu um tom novo nos olhos dele. Como se lhe comunicasse que estava disposto a ceder dessa vez, se ela não lhe pedisse, se, nesse ano, ela não lhe pedisse, o isentasse de ter de proibi-la, se soubesse agir por conta própria. Sem fazer questão de esconder as chaves, ficou mantendo o olhar no dele, como se tivessem a nítida consciência de que se seguravam um no outro por aquela delicada fimbria de sanidade. Então ela não perdeu mais tempo. Avançou escada acima com determinação, com todas as suas forças, ouvindo-o dizer pelas suas costas com sua voz cinzenta de barítono aposentado:”ele nunca precisou de nós”, contra o que ela lhe devolveu a frase que havia segurado por tanto tempo “como não se ele está me chamando, será possível que não o escuta chamando pela casa toda”, mas não lhe saindo nada senão um esgar cansado e agudo e firme. Depois de subir as escadas, colocou a chave na fechadura, sentindo uma alegria selvagem que devia lhe acentuar ainda mais o ar de doida varrida, e destrancou a porta. Riu ao imaginar a possibilidade daquele velho dar um pulo da poltrona e escalar as escadas de três em três degraus para impedi-la. Empurrou a maçaneta e a porta se abriu lugubremente. Ele estava deitado na cama na mesma posição que o deixara. Estava acordado e a olhava com serenidade, não parecia ter duvidado que ela lhe responderia ao chamado. Ela avançou com um sorriso trêmulo, não acreditando mas sabendo que era verdade. Sua percepção de dona de casa admirando que os móveis estivessem tão limpos, e lençol e o cobertor tão brancos que podia-se percebê-los na penumbra. Caminhou com cautela até a cama, sentou-se a seu lado ao mesmo tempo em que ele se levantava das cobertas. Conteve-o carinhosamente com seus velhos braços, impondo a força necessária para mantê-lo abraçado. Sentiu o hálito característico de quando acordava pela manhã mas dessa vez não lhe lembraria de escovar os dentes ao se levantar. Queria apenas continuar a tê-lo nos braços, não o soltaria dessa vez por nada e estava determinada a esquecer de tudo, de avisar ao velho o quanto ele estava enganado esses anos todos, abraçá-lo firme e esquecer de dar asas àquela observação involuntária de como as cicatrizes no corpo dele haviam se reduzido a linhas delgadas, que haviam tornadas imperceptíveis até quase desaparecerem por completo. 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Ioan



 Quando estou melancólico, eu nunca espero os sinais mas eles sempre vem. Hoje foi ao sair de carro, no início de uma tempestade furiosa que cai com tudo agora sobre a cidade. Nós estávamos no bairro mais afastado, um belo e pacato lugar onde moram os mais pobres, onde os idosos ficam nas portas das casas em conversas alegres e arrastadas; então uma senhorinha, que parecia ter já seus oitenta anos, andava de frente a meu carro, no meio da rua. Ela carregava um fardo de lenha nas costas e, apesar de eu estar dirigindo muito lentamente para não assustá- la, quando ela me percebeu fez um movimento rápido para o lado da calçada, uma espécie de pulo jovial que bem poderia ser feito por uma menina de 10 anos. Passei por ela e ela virou o rosto para nós com um sorriso deslumbrante, cheio de imortalidade e vida. Aquilo deixou todos nós radiantes. "Como ela é linda!", a Dani disse. A Júlia disse: "Papai, parece aquela cena do Powaqqatsi". Já eu estou com o rosto dela nítido na cabeça e meu coração está cheio de esperança e conforto. Talvez isso esteja na raiz daquela crença judaica de que 36 pessoas, absolutamente desconhecidas e sem relevância social alguma, justificam a persistência do mundo. Nada pode com essa senhora, nem a guerra, nem a doença, nem a ignorância assassina. Tudo nela é espírito e fé.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

A chegada dos hunos



 Até o dia do colapso. Que ele estivesse pelo pescoço com aquela comédia barata que o destino fizera com sua vida era algo para não passar batido a alguém com a mínima acuidade perceptiva; ele até era generoso em sinais indo da apatia mecânica, em que atravessar em marcha lenta um simples corredor era uma tarefa hercúlea lhe soando incompreensível quando se via chegando no outro extremo em direção à luz, até uma ira mercurial que lhe tomava conta de vez em quando e sempre lhe parecia surpreendente ninguém ter providenciado seu afastamento imediato da sociedade por conta disso. Mas o que lhe aconteceu extrapolou todas as expectativas. Não imaginaria que o mecanismo adotado seria o das vozes, e num primeiro momento até respirou aliviado diante a intuição de que isso ele poderia suportar. De certa forma, ainda estavam sendo condescendentes com ele, pois um rompimento de uma artéria cerebral obviamente teria sido muito pior, ou em vez de vozes viessem lhe esclarecer sobre a necessidade de um despertar espiritual através do uso pirotécnico das luzes. Lera em algum lugar sobre um homem que via luzes envolvendo um caudal de serafins de severos semblantes incorruptíveis descendo em conflagração dos céus, o que os exames médicos a que o obrigaram sua esposa e filhas empobreceu bastante a prostrante beleza do milagre ao aparelho de eletroencefalograma transcodificá-lo em um câncer no cérebro. Agora, vozes, e ainda a voz de tom sutil, impossível de saber a qual gênero pertencia, mas não diáfana nos moldes do tédio da moda das músicas celtas, era algo até bastante prazeroso, e sua memória conservava uma ingenuidade voraz que lhe dizia para não se preocupar com consequências fisiológicas. A primeira voz ouvida foi quando estava no escritório de seu chefe, lhe soando tão próxima ao ouvido, com uma determinação trivialesca em querer mostrar que fora conduzida por uma distância não apta a ser imaginada para esse plano dimensional afim de ficar junto dele, que ele se voltou para a cara sibarita cujas encarnações pregressas em corpos de reis e donzelas da corte sua alma moldara para abrigar-se naquele avatar agora rebaixado por uma inexplicável provação detrás da mesa. Viu seu chefe lhe dirigir um olhar desamparado, como se o tivesse flagrado em um momento sem retorno processando alguma descompressão interna na qual o punitivo abandono cósmico naquela vida medonha aparecia em uma nudez absoluta, e teve certeza que ele também a ouvira. Emitiu um sorrisinho de alguém que tinha uma doença terminal, mas quando Eme estava fechando a porta lhe ergueu o braço em um aceno de coragem. Eme tentou entender o que a voz lhe dissera. Parecia "Valentina"", ou, analisando mais tarde com um pendor mais acadêmico, "Mais valia". Seria mais valia? Rebobinava a fita da memória e lá estava a voz, um viking castrati em seu aterrizar etéreo no centro de todo aquele aparato estrutural do emprego que era como uma pedra lapidar em cima de suas energias para continuar vivendo, abrindo sua boca esfumaçante para dizer "Mais valia". Era tudo que precisava, se disse, com humor brincalhão, um espírito de luz marxista. Iria ser preciso fazer mais se aquilo fora enviado mesmo para o retirar de sua casca suicida de complacência. Será que mesmo seus anjos da guarda eram tão identificados com ele que não tinham também escapatória?, estavam geneticamente codificados para o embotamento assim como ele?


Daí foi que notou que uma voz próxima à cabeça era talvez mais aflitivo a longo prazo do que a visão de luzes. Se deu por isso quando estava sentado no sofá com Eike, assistindo à final do campeonato Macarrões Tornytonny de perguntas e respostas na televisão, um programa com índices de audiência devastadores para a economia do país que tinha que parar e fechar as portas dos comércios mais cedo, e que a secretaria de transportes públicos tinha que espremer todas as cartilhas de gestão de riscos para fazer os metrôs e ônibus chegarem com a frota aumentada em seus devidos pontos e estações meia hora antes dos horários costumeiros e assim antes do espetáculo começar afim de evitar qualquer comoção social, qualquer guerrilha ativada pela astúcia da história, e que só os macarrões Tornytonny era quem lucravam com essa bem arranjada estratégica das agências da mídia. A massiva exposição das embalagens coloridas do macarrão instantâneo, que obedecia à ordem do prisma de degradação da luz branca assim como cada luz correspondia a uma foto suculenta de sabor_ vermelho para camarão, amarelo para frango caipira, verde para molho de verduras, marrom para picanha_, fazia com que os receptores neuroniais que se desembocavam nas papilas gustativas ficassem em estado de frenesi paranoico pavloviano. Eike estava devorando seu prato de macarrões Tornytonny sabor pimenta dedo-de-moça, os filetes helicoidais tensionados no alto do garfo próximo à boca descendo por trinta centímetros de rastafári de materialização química suculenta, enquanto à sua frente descansava no colo uma massa quatro-queijos de macarrão Tornytonny cujo abandono paulatino de vapor o transformava em algo próximo à condição sintética, quando a voz voltou com tudo. Tinham passado a tarde daquele primeiro dia (ele e a voz), em estática entrevista sensual de namoro, sentado sozinho no apartamento competindo com as palmeiras quem simulava com mais sucesso indiferença ao ruído dos carros que passavam na rua abaixo, ela lhe contando sobre as regiões de pura eternidade que deixara para estar ali com ele, e ele às vezes pontilhando a sinfonia sincopada com monossílabos de inadvertência que deveriam reforçar a simbiose inter-genérica que se formava entre eles. Estava mesmo ficando louco, pensava, enquanto balançava a cabeça afirmativamente para não ser indelicado em deixar a voz pensar que falava sozinha. Seu sistema mental estava em franco erodimento, agora de uma vez por todas e sem desculpa. Suava frio e agradecia por estar sozinho para suportar aquilo: o dia em que o cérebro de Eme Skhole enfim se transformou em geleia. Talvez por o medo ter se acentuado demais nele, a voz por finesse resolveu dar um tempo, como uma dama que percebe que os coquetéis que tomou a mais começam a abalar as boas maneiras exigidas pelo anfitrião da casa. Ele pôde restaurar a fundação sobre a qual se equilibrava o antropológico aparato de suas certezas motivadoras básicas, e prosseguiu. Até o momento em que o apresentador do perguntas e respostas do Macarrões Tornytonny fez a sua primeira pergunta para os dois participantes, aqueles dois hunos apostólicos que impiedosamente escalpelara mais que metaforicamente todos seus adversários em dez semanas cruentsa até chegarem ali em glória diante toda a nação para concorrerem ao prêmio de meio milhão. As perguntas começaram com pouca dificuldade, referentes a ciclos geodésicos e estações do ano. Para um cidadão comum eram algo impossível para seus cérebros mutilados pela passagem por um rápido e circunstancial sistema de ensino responderem, e que tinham uma poesia embotante tecida propositalmente para levemente insinuar acolhedoras situações para se comer o Macarrão Tornytonny. Até que Eme deu-se por vencido de que ele próprio, saído de um ciclo nababesco de carros de motores injetados e sexo nos banheiros da escola com meninas destinadas a integrarem o exército do assistencialismo público, não poderia saber as respostas às perguntas mais complicadas dos últimos blocos do programa. Mas mesmo assim, as respostas lhe vinham assopradas no ouvido: u`+ u3 - u, Zona de Convergência Intertropical, Kaminaljuyú, Soledad Orozco, Plutão, nó de escota, Marlene Dietrich e não Karoline Herfurth. Repetia baixinho somente para si mesmo, para confirmar a cola soprada pela entidade imaterial, sem que Eike ouvisse, e segundos depois a mesma resposta aparecia sendo dita na tv. Foi para o quarto antes da pergunta final e se olhou no espelho, tampou os ouvidos com força até que só pôde notar a retumbância do zunido pulsando nas têmporas, e bem na superfície daquele isolamento de músculos e nervos contraídos escutou com cinzelada nitidez a voz lhe sussurrar uma palavra. Maersalalhasbas. Voltou para a sala enquanto os confetes e serpentinas caíam por sobre o ganhador, um rapaz de óculos com uma camisa negra de mangas compridas dos cortadores de pulso fracassados que permanecia congelado em incrédulo contentamento no meio da euforia caótica de plateia e apresentador estridentes, e fez a pergunta mais angustiante de seus treze anos de casamento por ela não ter nenhuma salvaguarda de trivialidade que deveria ter, ao que Eike lhe respondeu sorridente, se afundando de alívio no sofá junto com 40 milhões de outros espectadores pelo país: qual o nome do filho de Isaías?, dá para acreditar que perguntaram isso? quem iria saber?